segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Critica a Libração

As Boas Raparigas trazem a Portugal a estreia absoluta da peça «Libração», de Lluïsa Cunillé
A descoberta do frioEncenada por Cristina Carvalhal e interpretada por Carla Miranda e Maria do Céu Ribeiro, a peça «Libração», da catalã Lluïsa Cunillé, parte do encontro entre duas mulheres num jardim de ferro. Fora de cena, aqui, no Porto, o encontro é no Estúdio Zero, até domingo, dia 4. Filipa Leal“Tanto faz.” “Tanto faz.” É possivelmente quando tudo importa que esta frase se repete. “Tanto faz.” Duas mulheres encontram-se à meia-noite num jardim infantil onde tudo é de ferro. “Tanto faz.” Duas mulheres encontram-se três noites seguidas, à volta de uma descoberta. “Tanto faz.” Uma tem um filho que deixa em casa. “Tanto faz.” Outra não tem os cães que vai passear, que são de outros donos. “Tanto faz”, repetem. Tanto faz que amanhã não venhas. Tanto faz que amanhã não venhas. “Tanto faz”: estas poderiam ser as palavras de ordem de «Libração». Estas são as palavras de quem espera tudo, de quem perde tudo, de quem não se sabe recuperar.A companhia de teatro portuense As Boas Raparigas (As Boas Raparigas vão para o céu, as más para todo lado...) apresenta esta peça pela primeira vez em Portugal. No contexto do teatro catalão, fala-se já no «caso Cunillé». E não é caso para menos. No caso de «Libração», ao ambiente criado pelo texto juntou-se o ambiente criado pela encenadora Cristina Carvalhal, ambos magníficos, e a entrega de duas actrizes ao duro cenário (da peça? dos dias?), à extrema fragilidade do humano.«Libração» significa “movimento como que de oscilação que um corpo, ligeiramente perturbado no seu equilíbrio, efectua até recuperar pouco a pouco”, anunciam. “O tempo: meia-noite em ponto. O espaço: um parque onde tudo é de ferro. No parque, mobiliário urbano onde se encontram imagens de infância: cavalos que chiam, placas que proíbem deixar os cães à solta, a ronda da polícia vigiando ciclicamente todas as presenças reais. As palavras, as estratégias, os reconhecimentos, as memórias, as necessidades”, acrescentam.Mas o que é, realmente, «Libração»? Que descoberta é esta? A resposta de Lluïsa Cunillé é breve e exacta, como exacto é o texto que nos apresenta: “É o encontro entre duas mulheres num parque de uma cidade durante três noites de lua cheia. Faz frio, talvez seja Inverno ou finais de Outono”.A poética da subtracçãoComo tão bem referiu o dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra, “os textos de Lluïsa Cunillé surgem implacavelmente, salvo raras excepções, como testemunhos de uma impressionante vocação dramatúrgica que nenhuma indiferença ambiental poderá apagar”. Sinisterra insiste na “tenaz fecundidade” de L. Cunillé que, a seu ver, “diz muito do rigor, do compromisso e da honestidade desta autora que, como todos os verdadeiros criadores, escreve imbuída por uma profunda e decisiva necessidade interior. Escreve porque não pode evitá-lo, porque não pode deixar de o fazer: escrita e vida reclamam-se, exigem-se mutuamente. Assim como ela não necessita de reconhecimentos exteriores, também a sua escrita não depende deles. Brota irreprimivelmente do mesmo fundo que a faz viver”.Lluïsa Cunillé, que desde 1991 escreveu mais de 22 obras, aplicou, de acordo com o também crítico e encenador, uma “poética da subtracção” a diferentes zonas da teatralidade, com diferentes resultados: “Desde a total oclusão do referente e/ou do contexto situacional que torna francamente crípticos alguns textos – mas nem por isso desprovidos de humor, de lirismo, de dramaticidade, de intriga –, até à renúncia em desvendar, noutros textos, os antecedentes ou a motivação das personagens, a conexão entre as diferentes cenas que constituem uma obra, o nível de realidade de uma situação, o destinatário da palavra, a veracidade de uma informação ou de uma confissão e, sobretudo, a natureza dos vínculos afectivos e a intensidade subterrânea das emoções e sentimentos, a sua escrita realiza uma subtil e implacável exploração dos limites da opacidade”.A peça está em cena até ao próximo domingo, dia 4, no Estúdio Zero (Rua do Heroísmo, 86), de terça-feira a sábado às 21h45, e aos domingos e feriados às 17h00. Essencial será visitar este jardim de ferro. Porque só na aceitação do que perturba e faz frio e encanta não se perde o equilíbrio. Porque só a indiferença, essa sim, tanto faz. «Libração» fica em nós como um relógio que não parte. Que não pára.


Filipa Leal, in Primeiro de Janeiro, 5 de Novembro de 2007