segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Cítica a Libração (II)

MINIMALISMO VERBAL
texto João Paulo Sousa
Quem conhecer o percurso da companhia As Boas Raparigas há-de notar que este é um dos raros espectáculos em que a encenação não ficou a cargo do seu director artístico, Rogério de Carvalho. Em Libração, essa tarefa foi assumida por Cristina Carvalhal que, em
parceria com a actriz Carla Miranda, assinou também a tradução da peça da catalã Lluïsa Cunillé. Reconfiguradas as expectativas em relação ao espectáculo, o que se nos depara é uma curiosa inversão dos domínios em que o minimalismo se faz habitualmente sentir nos trabalhos desta companhia. Se, com Rogério de Carvalho, é frequente que o palco se encontre reduzido a uma espécie de caixa negra, quase destituída de adereços e episodicamente rasgada por rigorosos feixes de luz, que abrem passagem a actores em confronto com textos longos e exigentes, agora o cenário inclui um mobiliário urbano específico, constituído por brinquedos de um parque infantil, a par de um banco, de um cesto do lixo e de um bebedouro. É tudo de ferro, gasto como se já não tivesse uso ou fosse apenas o eco de uma infância distante, áspero como também o chão se apresenta, mas servindo para o triplo encontro nocturno, sempre à volta da meia-noite, de duas mulheres. A desolação envolvente é explicitada pela presença destes objectos, todos dotados de uma rigorosa pertinência no contexto dos diálogos estabelecidos pelas personagens.
Por outro lado, é no texto que se encontra agora o minimalismo e a intensidade que caracterizam as produções de As Boas Raparigas. O despojamento verbal concretiza-
se nas frases curtas, incompletas, não mais, por vezes, do que vestígios de pensamentos, em sintonia com a escassez das informações que são prestadas, ao longo de toda a peça, sobre as mulheres que ali se encontram por três noites. Os silêncios, os movimentos ensaiados
e logo contidos, as expressões faciais, em suma, todos esses sinais de superfície passam a consubstanciar uma via de acesso decisiva para o conhecimento que o espectador pode compor das personagens. A ausência de referentes, mesmo de nomes, desloca a situação
dramática para uma lógica arquetípica, como se as duas mulheres pudessem ser substituídas por qualquer uma das espectadoras. Uma delas tem um filho (um miúdo cujo nome próprio é precisamente Miúdo, em mais um exemplo da diluição da individualidade que a peça nos
apresenta), a outra passeia cães alheios (nunca está bem certa do sítio em que eles estão, mas recusa-se a chamá-los, por considerar ridículo o nome de, pelo menos, um deles). É também disso que falam, embora com contenção, criando zonas equívocas nas tentativas
de comunicação que vão efectuando, ao mesmo tempo que os objectos lhes proporcionam situações próprias de um registo clownesco. As falas das personagens de Beckett erguem-se aqui como um pano de fundo difuso, em parte pela capacidade que também estas mulheres têm de gerar humor a partir de objectos do quotidiano, como é o caso da situação do guarda-chuva emprestado, que encrava e já não pode ser fechado. Isolar uma situação
destas e amplificá-la, precisamente porque toda a atenção está aí concentrada, corresponde a identificar a dimensão de absurdo e a ausência de sentido que pontuam tantos dos nossos gestos habituais. Na verdade, o processo consiste em separar um comportamento dos
restantes que poderiam enquadrá-lo, em suspender os nexos de causalidade que criavam um sentido para esse comportamento, o que se apresenta em perfeita sintonia com a ausência de referências externas das personagens.
A fragmentaridade intensifica a dor das duas mulheres, muitas vezes sem recurso às falas ou, então, sem que estas sejam suficientemente esclarecedoras. Isto significa que a peça não seria capaz de produzir nem metade do seu efeito se o trabalho das duas actrizes,
Carla Miranda e Maria do Céu Ribeiro, não tivesse correspondido plenamente às exigências do espectáculo. Esse é seguramente um dos pontos fortes de Libração,
dado que ambas constroem as respectivas personagens com uma segurança e um rigor notáveis. A adequação dos gestos às palavras adquire, assim, a força de uma rede em que a lógica se instaura quando percebemos retrospectivamente a relação que é possível estabelecer entre as diversas cenas. A descoberta, na terceira noite, da justificação para o barulho que, em plena escuridão, se fizera ouvir no início das duas noites anteriores é um
bom exemplo dessas ligações retrospectivas. Disseminado pelas vários brinquedos que constituem o parque infantil, o movimento de oscilação de um corpo em busca do equilíbrio, indicado no título da peça, pode, então, ser visto como uma metáfora abrangente, como o indício dessa procura incessante de escapar à solidão que parece conduzir as intervenções e os gestos das personagens. Que essa tentativa está condenada ao
fracasso é o que se percebe diante da parede que devolve as vozes das mulheres e as condena à presença do eco como interlocutor válido, assim as afundando numa soledade radical, destituída de qualquer esperança.
In Revista Obscena, Novembro de 2007