segunda-feira, 5 de novembro de 2007

ACOLHIMENTO

TAUTOLOGIAS

Os filhos são as coisas mais importantes do mundo!!
Serão mesmo?



As confissões tautológicas mais profundas e sinceras que todos os pais gostariam de fazer um dia, os desejos não reprimidos de todos os filhos expostos ao Santo Pai Natal, dores de parto, bonecas de Vúdu, a inveja histérica do pénis, não são aqui fragâncias mas sim um tiro no inconsciente mais consciente de todos nós, numa encenação de João Mota com os alunos da Escola Superior de Música e das artes do espectáculo.


De 13 a 20 de Novembro´07
todos os dias pelas 21:30 h

No Estúdio Zero
(Rua do heroísmo, 86
junto à estação do metro)

Info + reservas
tautologias-teatro.blogspot.com

tautologias.teatro@gmail.com

22 519 37 60 / 22 519 37 63

Cítica a Libração (II)

MINIMALISMO VERBAL
texto João Paulo Sousa
Quem conhecer o percurso da companhia As Boas Raparigas há-de notar que este é um dos raros espectáculos em que a encenação não ficou a cargo do seu director artístico, Rogério de Carvalho. Em Libração, essa tarefa foi assumida por Cristina Carvalhal que, em
parceria com a actriz Carla Miranda, assinou também a tradução da peça da catalã Lluïsa Cunillé. Reconfiguradas as expectativas em relação ao espectáculo, o que se nos depara é uma curiosa inversão dos domínios em que o minimalismo se faz habitualmente sentir nos trabalhos desta companhia. Se, com Rogério de Carvalho, é frequente que o palco se encontre reduzido a uma espécie de caixa negra, quase destituída de adereços e episodicamente rasgada por rigorosos feixes de luz, que abrem passagem a actores em confronto com textos longos e exigentes, agora o cenário inclui um mobiliário urbano específico, constituído por brinquedos de um parque infantil, a par de um banco, de um cesto do lixo e de um bebedouro. É tudo de ferro, gasto como se já não tivesse uso ou fosse apenas o eco de uma infância distante, áspero como também o chão se apresenta, mas servindo para o triplo encontro nocturno, sempre à volta da meia-noite, de duas mulheres. A desolação envolvente é explicitada pela presença destes objectos, todos dotados de uma rigorosa pertinência no contexto dos diálogos estabelecidos pelas personagens.
Por outro lado, é no texto que se encontra agora o minimalismo e a intensidade que caracterizam as produções de As Boas Raparigas. O despojamento verbal concretiza-
se nas frases curtas, incompletas, não mais, por vezes, do que vestígios de pensamentos, em sintonia com a escassez das informações que são prestadas, ao longo de toda a peça, sobre as mulheres que ali se encontram por três noites. Os silêncios, os movimentos ensaiados
e logo contidos, as expressões faciais, em suma, todos esses sinais de superfície passam a consubstanciar uma via de acesso decisiva para o conhecimento que o espectador pode compor das personagens. A ausência de referentes, mesmo de nomes, desloca a situação
dramática para uma lógica arquetípica, como se as duas mulheres pudessem ser substituídas por qualquer uma das espectadoras. Uma delas tem um filho (um miúdo cujo nome próprio é precisamente Miúdo, em mais um exemplo da diluição da individualidade que a peça nos
apresenta), a outra passeia cães alheios (nunca está bem certa do sítio em que eles estão, mas recusa-se a chamá-los, por considerar ridículo o nome de, pelo menos, um deles). É também disso que falam, embora com contenção, criando zonas equívocas nas tentativas
de comunicação que vão efectuando, ao mesmo tempo que os objectos lhes proporcionam situações próprias de um registo clownesco. As falas das personagens de Beckett erguem-se aqui como um pano de fundo difuso, em parte pela capacidade que também estas mulheres têm de gerar humor a partir de objectos do quotidiano, como é o caso da situação do guarda-chuva emprestado, que encrava e já não pode ser fechado. Isolar uma situação
destas e amplificá-la, precisamente porque toda a atenção está aí concentrada, corresponde a identificar a dimensão de absurdo e a ausência de sentido que pontuam tantos dos nossos gestos habituais. Na verdade, o processo consiste em separar um comportamento dos
restantes que poderiam enquadrá-lo, em suspender os nexos de causalidade que criavam um sentido para esse comportamento, o que se apresenta em perfeita sintonia com a ausência de referências externas das personagens.
A fragmentaridade intensifica a dor das duas mulheres, muitas vezes sem recurso às falas ou, então, sem que estas sejam suficientemente esclarecedoras. Isto significa que a peça não seria capaz de produzir nem metade do seu efeito se o trabalho das duas actrizes,
Carla Miranda e Maria do Céu Ribeiro, não tivesse correspondido plenamente às exigências do espectáculo. Esse é seguramente um dos pontos fortes de Libração,
dado que ambas constroem as respectivas personagens com uma segurança e um rigor notáveis. A adequação dos gestos às palavras adquire, assim, a força de uma rede em que a lógica se instaura quando percebemos retrospectivamente a relação que é possível estabelecer entre as diversas cenas. A descoberta, na terceira noite, da justificação para o barulho que, em plena escuridão, se fizera ouvir no início das duas noites anteriores é um
bom exemplo dessas ligações retrospectivas. Disseminado pelas vários brinquedos que constituem o parque infantil, o movimento de oscilação de um corpo em busca do equilíbrio, indicado no título da peça, pode, então, ser visto como uma metáfora abrangente, como o indício dessa procura incessante de escapar à solidão que parece conduzir as intervenções e os gestos das personagens. Que essa tentativa está condenada ao
fracasso é o que se percebe diante da parede que devolve as vozes das mulheres e as condena à presença do eco como interlocutor válido, assim as afundando numa soledade radical, destituída de qualquer esperança.
In Revista Obscena, Novembro de 2007


Critica a Libração

As Boas Raparigas trazem a Portugal a estreia absoluta da peça «Libração», de Lluïsa Cunillé
A descoberta do frioEncenada por Cristina Carvalhal e interpretada por Carla Miranda e Maria do Céu Ribeiro, a peça «Libração», da catalã Lluïsa Cunillé, parte do encontro entre duas mulheres num jardim de ferro. Fora de cena, aqui, no Porto, o encontro é no Estúdio Zero, até domingo, dia 4. Filipa Leal“Tanto faz.” “Tanto faz.” É possivelmente quando tudo importa que esta frase se repete. “Tanto faz.” Duas mulheres encontram-se à meia-noite num jardim infantil onde tudo é de ferro. “Tanto faz.” Duas mulheres encontram-se três noites seguidas, à volta de uma descoberta. “Tanto faz.” Uma tem um filho que deixa em casa. “Tanto faz.” Outra não tem os cães que vai passear, que são de outros donos. “Tanto faz”, repetem. Tanto faz que amanhã não venhas. Tanto faz que amanhã não venhas. “Tanto faz”: estas poderiam ser as palavras de ordem de «Libração». Estas são as palavras de quem espera tudo, de quem perde tudo, de quem não se sabe recuperar.A companhia de teatro portuense As Boas Raparigas (As Boas Raparigas vão para o céu, as más para todo lado...) apresenta esta peça pela primeira vez em Portugal. No contexto do teatro catalão, fala-se já no «caso Cunillé». E não é caso para menos. No caso de «Libração», ao ambiente criado pelo texto juntou-se o ambiente criado pela encenadora Cristina Carvalhal, ambos magníficos, e a entrega de duas actrizes ao duro cenário (da peça? dos dias?), à extrema fragilidade do humano.«Libração» significa “movimento como que de oscilação que um corpo, ligeiramente perturbado no seu equilíbrio, efectua até recuperar pouco a pouco”, anunciam. “O tempo: meia-noite em ponto. O espaço: um parque onde tudo é de ferro. No parque, mobiliário urbano onde se encontram imagens de infância: cavalos que chiam, placas que proíbem deixar os cães à solta, a ronda da polícia vigiando ciclicamente todas as presenças reais. As palavras, as estratégias, os reconhecimentos, as memórias, as necessidades”, acrescentam.Mas o que é, realmente, «Libração»? Que descoberta é esta? A resposta de Lluïsa Cunillé é breve e exacta, como exacto é o texto que nos apresenta: “É o encontro entre duas mulheres num parque de uma cidade durante três noites de lua cheia. Faz frio, talvez seja Inverno ou finais de Outono”.A poética da subtracçãoComo tão bem referiu o dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra, “os textos de Lluïsa Cunillé surgem implacavelmente, salvo raras excepções, como testemunhos de uma impressionante vocação dramatúrgica que nenhuma indiferença ambiental poderá apagar”. Sinisterra insiste na “tenaz fecundidade” de L. Cunillé que, a seu ver, “diz muito do rigor, do compromisso e da honestidade desta autora que, como todos os verdadeiros criadores, escreve imbuída por uma profunda e decisiva necessidade interior. Escreve porque não pode evitá-lo, porque não pode deixar de o fazer: escrita e vida reclamam-se, exigem-se mutuamente. Assim como ela não necessita de reconhecimentos exteriores, também a sua escrita não depende deles. Brota irreprimivelmente do mesmo fundo que a faz viver”.Lluïsa Cunillé, que desde 1991 escreveu mais de 22 obras, aplicou, de acordo com o também crítico e encenador, uma “poética da subtracção” a diferentes zonas da teatralidade, com diferentes resultados: “Desde a total oclusão do referente e/ou do contexto situacional que torna francamente crípticos alguns textos – mas nem por isso desprovidos de humor, de lirismo, de dramaticidade, de intriga –, até à renúncia em desvendar, noutros textos, os antecedentes ou a motivação das personagens, a conexão entre as diferentes cenas que constituem uma obra, o nível de realidade de uma situação, o destinatário da palavra, a veracidade de uma informação ou de uma confissão e, sobretudo, a natureza dos vínculos afectivos e a intensidade subterrânea das emoções e sentimentos, a sua escrita realiza uma subtil e implacável exploração dos limites da opacidade”.A peça está em cena até ao próximo domingo, dia 4, no Estúdio Zero (Rua do Heroísmo, 86), de terça-feira a sábado às 21h45, e aos domingos e feriados às 17h00. Essencial será visitar este jardim de ferro. Porque só na aceitação do que perturba e faz frio e encanta não se perde o equilíbrio. Porque só a indiferença, essa sim, tanto faz. «Libração» fica em nós como um relógio que não parte. Que não pára.


Filipa Leal, in Primeiro de Janeiro, 5 de Novembro de 2007